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quinta-feira, maio 16, 2013

Ill A Crise de Identidade Da mulher


DESCOBRI ALGO ESTRANHO QUANDO ENTREVISTAVA AS 
mulheres de minha geração, nos últimos dez anos. Na juventude, 
várias de nós não conseguíamos imaginar-nos com mais de vinte e 
um anos. Não tínhamos ideia alguma de nosso futuro de mulher. 
Lembro-me de uma tranquila tarde de primavera, no campus 
de Smith, em 1942, quando cheguei a um assustador impasse em 
relação ao meu futuro. Alguns dias antes recebera notícia de que 
conseguira uma bolsa de pós-graduação. Enquanto recebia parabéns, 
sentia, por debaixo de minha excitação, uma estranha incerteza, uma 
interrogação na qual eu não queria pensar. 
«Será isto mesmo o que eu desejo?» A pergunta separava-me, 
fria e sozinha, das moças que conversavam e estudavam na colina 
ensolarada, por detrás do colégio. Eu queria ser psicóloga. Mas, se 
não tinha certeza disso, que é então que eu desejava ser? Tive a 
impressão de que o futuro se fechava sobre mim e não conseguia 
visualizar-me dentro dele. Não fazia ideia alguma de mim mesma 
para além da universidade. Ali chegara aos dezessete anos, moça 
insegura, vinda de uma cidade do Meio Oeste. Os amplos horizontes do mundo e da vida do espírito abriram-se então para mim. Comecei a compreender quem eu era e o que desejava realizar. Não 
podia voltar atrás. Não podia voltar para casa, para a vida de minha mãe e das mulheres de nossa cidade, presas ao lar, ao bridge, 
às compras, às crianças, ao marido, às roupas, às obras de caridade. Mas agora que chegara o momento de concretizar o meu futuro, dar o passo decisivo, de súbito não sabia o que fazer. 
Fiz o curso de pós-graduação, mas na primavera seguinte, ao 
sol estranho da Califórnia e de uma nova universidade, a pergunta 
62 tornou a ocorrer-me e não consegui afastá-la da mente. Conquistara 
outra bolsa de estudo que me prenderia à pesquisa para o doutorado, 
a carreira de psicóloga profissional. «E' isso mesmo que eu quero 
ser?» A decisão agora aterrorizava-me de fato. Vivi apavorada e 
indecisa vários dias, incapaz de pensar em outra coisa. 
A questão não era importante, disse a mim mesma. Nada era 
importante para mim naquele ano, exceto o amor. Enquanto passeávamos nas colinas de Berkelley, um rapaz me disse: «Não pode 
dar certo entre nós. Jamais conseguirei uma bolsa de estudo igual 
a sua». Julgaria eu estar escolhendo irrevogavelmente a fria solidão 
daquela tarde se continuasse os estudos? Desisti da bolsa, aliviada. 
Mas durante muitos anos não consegui ler uma só palavra da ciência que no passado julgara ser o objetivo de minha vida. Era demasiado penosa a lembrança da perda. 
Jamais consegui explicar, eu própria mal compreendi, por que 
desisti dessa carreira. Vivia no presente, trabalhando em jornais, sem 
qualquer plano definido. Casei, tive filhos, vivi segundo a mística 
feminina como dona de casa suburbana. Mas a pergunta continuava a 
perseguir-me. Não encontrava um objetivo na vida, não encontrava 
paz, até que finalmente resolvi enfrentá-la e descobrir a resposta. 
Conversando com as diplomandas de Smith em 1959 percebi 
que a pergunta continua a ser hoje aterradora. Só que a resposta 
que lhe dão agora não é absolutamente uma resposta, segundo descobriu a minha geração, depois de viver metade da existência. 
As moças estavam sentadas na sala da universidade, tomando 
café. A cena não era muito diferente das do meu tempo, exceto pelo 
fato de que um número maior de jovens usava aliança na mão direita. Perguntei às mais próximas o que pretendiam ser no futuro. 
As noivas falaram em casamento, apartamentos, arranjar emprego 
de secretária enquanto o marido terminasse os estudos. As outras, 
depois de um silêncio hostil, deram respostas vagas, falando de diversos empregos, de cursos de pós-graduação, mas nenhuma tinha 
planos definidos. Uma loura de «rabo-de-cavalo» perguntou-me, no 
dia seguinte, se eu acreditava no que me haviam dito. «Ninguém 
falou a verdade» — disse-me ela. «Não gostam de ser interrogadas 
sobre seus planos de futuro. Ninguém sabe o que vai fazer. E nem 
gostam de pensar nisso. As que vão casar logo são as mais felizes. 
Não precisam pensar no assunto». 
Mas reparei naquela noite que várias das noivas, sentadas em 
silêncio ao redor da lareira, enquanto eu interrogava as outras sobre empregos, pareciam estar também zangadas. «Não gostam da 
ideia de interromper os estudos» — explicou minha loura informante. «Sabem que não vão ter ocasião de utilizar o que estudaram. 
Serão esposas e mães. Talvez até continuem a ler e a se interessar 
63 pela comunidade, mas não é a mesma coisa. A verdade é que se 
deixa de estudar. E' um desapontamento parar agora, sabendo que 
é impossível utilizar o que se aprendeu». 
Em contraponto ouvi as palavras de uma mulher, quinze anos 
depois de sair da universidade, esposa de médico, mãe de três filhos, tomando café na cozinha de sua casa, na Nova Inglaterra: 
"A tragédia é que ninguém jamais nos olhou de frente, dizendo: Você 
precisa resolver o que pretende de sua vida, além de ser esposa e mãe. 
Nunca pensei no assunto até completar trinta e seis anos. Meu marido estava, por essa época, tão ocupado com sua clientela que nem sempre podíamos conversar à noite. Os três meninos passavam o dia inteiro na escola. 
Eu continuava insistindo em ter filhos, apesar de problemas com o fator 
Rh. Depois de dois abortos, os médicos disseram que eu precisava desistir. 
Julguei que minha evolução pessoal já terminara. Sempre pensei, quando 
criança, que ao crescer iria para a universidade, depois casaria. Para mim, 
este era o ponto culminante dos anseios de uma moça. 
Após, o marido decidiria e preencheria a minha vida. Só depois que, 
mulher de médico, me senti tão solitária e comecei a gritar com as crianças 
porque não me deixavam realizada, compreendi que precisava de interesses 
pessoais. Não decidira ainda qual seria a minha vida. Não acabara de evoluir. 
Levei dez anos para descobrir". 
A mística feminina permite e até incentiva na mulher a ignorância da questão de sua identidade. Afirma que é possível responder à pergunta «quem sou eu?» Dizendo — «Mulher de Tom... 
mãe de Maria». Mas não creio que a mística tivesse adquirido tal 
poder sobre a americana se ela não temesse enfrentar esse aterrador vazio que a impede de imaginar a si mesma depois dos vinte 
e um anos. A verdade é que — e há quanto tempo isto é exato não 
sei com certeza, mas era assim na minha geração e continua a ser 
para as jovens que se estão formando hoje em dia — a americana não possui mais uma ideia íntima que lhe diga quem ela é, 
ou deseja ser. 
A imagem pública das revistas e anúncios de televisão destinase a vender máquinas de lavar, misturas de bolos, desodorantes, detergentes, cremes rejuvenescedores, tinturas de cabelo. Mas a for-
ça dessa imagem, pela qual firmas gastam milhões de dólares em 
tempo de televisão e espaço publicitário, provém do seguinte: a mulher americana ignora quem seja. Está precisando terrivelmente de 
um novo ideal que a ajude a encontrar sua identidade. Os pesquisadores vivem dizendo aos anunciantes que ela é tão insegura que 
espera de sua brilhante imagem pública a solução de cada detalhe 
do cotidiano. Procura uma imagem que não aceitará de sua mãe. 
Em minha geração, muitas diziam claramente não desejar ser 
como suas mães, embora gostassem delas. Era impossível ignorar 
o desapontamento materno. Compreendíamos, ou apenas pressentía-
64 mos, a tristeza, o vazio que as levavam a agarrar-se a nós, tentando viver nossas vidas, dirigir a de nossos pais, passar os dias fazendo compras ou sonhando com coisas que aparentemente nunca 
as satisfaziam, por mais dispendiosas que fossem. Estranho: muitas 
mães que amavam de fato as filhas — e a minha era uma dessas 
— não queriam para elas uma vida igual a sua. Sabiam que precisávamos de algo mais. 
Mas, embora insistissem, lutassem para que nos educássemos, 
falassem com nostalgia da carreira que não estava ao seu alcance, 
eram incapazes de nos dar uma ideia do que deveríamos ser. Só 
conseguiam dizer que tinham a vida vazia, presa ao lar; e que filhos, cozinha, roupas, bridge e obras de caridade não bastavam. 
Alguma talvez dissesse claramente: «Não seja apenas uma dona de 
casa como eu». Mas a filha, achando que a mãe era demasiado frustrada para apreciar o amor do marido e dos filhos, talvez pensasse: «Vencerei onde minha mãe fracassou. Eu me realizarei como mulher», ignorando a lição que era a própria vida materna. 
Entrevistando recentemente garotas de secundário que haviam 
começado cheias de talento e promessa, mas de repente renunciaram 
aos estudos, comecei a perceber novas dimensões no problema da 
conformidade da mulher. Essas jovens, pareceu-me a princípio, estavam simplesmente seguindo a curva típica do ajuste feminino. Anteriormente interessadas em geologia ou poesia, interessavam-se agora somente em ser admiradas. Para agradar aos rapazes era melhor 
ser igual às outras. Estudando-as com mais atenção descobri que 
tinham tanto pavor de se tornarem como as próprias mães que não 
conseguiam imaginar a si mesmas no futuro. Tinham medo de crescer. Precisavam copiar, detalhe a detalhe, a imagem da jovem popular, negando o melhor de si mesmas por medo à feminilidade segundo sua mãe. Uma delas, com dezessete anos, disse-me: 
— Quero tanto ser igual às outras! Não consigo dominar a impressão 
de ser uma principiante, de estar "por fora". Quando me levanto para atravessar a sala sinto-me como uma novata, ou como alguém que sofre de 
um defeito terrível. E' algo que não consigo dominar. Vou ao ponto onde 
se reúne a turma depois da aula e fico lá sentada horas seguidas, falando 
sobre vestidos, penteados, música popular. Não estou interessada em nada 
disso. E' um verdadeiro esforço. Mas descobri que podia fazer com que gostassem de mim imitando o que todas fazem, vestindo como as outras, conversando igual a elas, em vez de me dedicar a algo diferente. Acho até 
que interiormente comecei a me identificar. 
Costumava escrever poesia. O teste de orientação diz que tenho capacidade criadora, que deveria estar nos primeiros lugares da classe e que 
terei um grande futuro. Mas isso não é o tipo de coisa que torna a pessoa popular. 
Agora saio com um rapaz depois do outro, o que é um esforço, porque 
não sou eu mesma junto deles. Isto faz com que eu me sinta ainda mais 
Mística Feminina — 5 65 solitária. Além do mais, tenho medo de saber para onde me levará tudo isso. 
Daqui a pouco todas as minhas diferenças estarão anuladas e eu serei o 
tipo de moça talhada para ser dona de casa. 
Não quero pensar em me tornar adulta. Se tivesse filhos gostaria que 
ficassem sempre pequenos. Vê-los crescer vai me lembrar que estou envelhecendo e isso eu não quero. Minha mãe diz que não consegue dormir à 
noite, preocupada com o que eu possa estar fazendo. Quando eu era pequena não me deixava atravessar a rua sozinha, mesmo depois que todos 
os de minha idade já tinham atravessado. 
Não posso imaginar-me casada e com filhos. E' como se eu não tivesse 
nenhuma personalidade. Minha mãe parece um rochedo alisado pelas ondas, 
um vazio. Dedicou-se tanto à família que não sobrou nada para ela e sente rancor porque nós não retribuímos seu carinho à altura. Mas às vezes 
tenho a impressão de que ela não existe. Minha mãe não tem nenhum objetivo, exceto arrumar a casa. E' infeliz e infelicita meu pai. Se ela não gostasse nem um pouco dos filhos seria o mesmo que se gostasse demais. 
Quando eu era pequena e entrava correndo, toda excitada, para contar que 
aprendera a ficar de cabeça para baixo, ela nunca me dava atenção. 
Ultimamente olho para o espelho temendo estar ficando parecida com 
ela. Assusto-me quando me surpreendo fazendo os seus gestos, usando suas 
palavras, ou qualquer coisa assim. Não somos muito parecidas, mas se me 
identificar num só ponto com ela sei que vou acabar ficando igual. E isso me apavora. 
E assim a jovem de dezessete anos, que tinha tanto medo de 
se parecer com a mãe, voltou as costas a todas as suas riquezas 
interiores e às oportunidades que a tornariam uma mulher diferente, a fim de copiar a aparência das moças «populares». E finalmente, em pânico por se estar perdendo, voltou as costas à popularidade e desafiou o comportamento convencional que lhe daria uma 
bolsa universitária. Por falta de um ideal que a ajudasse a se tornar uma mulher autêntica, retrocedeu para o vazio dos beatniks. 
Uma outra caloura de universidade da Carolina do Sul contou-me: 
— Não quero interessar-me por uma carreira à qual terei que renunciar. 
Minha mãe queria ser jornalista desde os doze anos, e eu a vi frustrada durante vinte anos. Não me quero interessar por assuntos internacionais. Não me quero interessar por nada além da casa e de me tornar 
uma esposa e mãe maravilhosa. Talvez a cultura seja um perigo. Mesmo 
os rapazes mais inteligentes só querem saber de moças dóceis e bonitas. 
Às vezes pergunto a mim mesma como me sentiria crescendo à vontade e 
aprendendo tudo o que quisesse, em lugar de ter que me encolher. 
Sua mãe, como a minha e a de quase todas nós, era dona de 
casa, embora algumas tivessem iniciado, sonhado ou lamentado renunciar a uma profissão. Tudo o que diziam revelava o vazio de 
sua vida. Não queríamos ser iguais a elas, mas que outro modelo 
possuíamos? 
Os únicos outros tipos de mulher que conheci durante meus 
anos de formação eram as solteironas, professoras do ginásio, a bi-
66 bliotecária, a médica de nossa cidade, que cortava o cabelo como 
homem, e algumas das minhas mestras da universidade. Nenhuma 
delas vivia no ninho quente que eu conhecia em casa. Muitas não 
se casaram, nem tinham filhos. Temia tornar-me igual a elas, mesmo às que me ensinaram a respeitar minha inteligência e a usá-la, 
e a sentir que fazia parte do mundo. Jamais conheci uma mulher, 
nos meus anos de formação, que usasse a mente, representasse um 
papel no mundo e também amasse e tivesse filhos. 
Creio que foi este o âmago do problema feminino na América 
durante muito tempo — a falta de uma imagem pessoal. A imagem 
pública, que desafia a razão e tem pouco a ver com a realidade, 
teve o poder de modelar excessivamente a vida da mulher. Mas essa 
imagem não possuiria tal força se não existisse uma crise de 
identidade. 
O estranho e aterrador impasse que a americana atinge aos dezoito, vinte e um, vinte e cinco, quarenta e um anos — foi observado durante muito tempo por sociólogos, psicólogos, analistas, educadores, mas creio que não foi compreendido como devia. Foi chamado de «descontinuidade no condicionamento cultural»; de «crise 
de situação». A culpa foi atribuída à educação, que fez com que as 
americanas crescessem livres e em plano de igualdade com os rapazes, jogando baseball, andando de bicicleta, dominando a geometria e as cátedras dos colégios, cursando universidades, arranjando 
empregos, morando sozinhas em apartamentos de Nova York, Chicago, ou São Francisco, descobrindo e testando sua capacidade no 
mundo. Tudo isto lhes deu a sensação de poder ser a realizar o que 
bem entendessem, com a mesma liberdade que os rapazes. Não as 
preparou para o papel de mulher. A crise ocorre quando são obrigadas a se adaptar a esse papel. A alta incidência de conflitos emocionais e esgotamentos nervosos em mulheres de vinte e trinta anos 
é atribuída a essa crise de situação. Se fossem educadas para o 
seu papel não a sofreriam, dizem os orientadores. 
Mas creio que estão vendo apenas meia verdade. 
E se o terror que uma jovem sofre aos vinte e um anos, no 
momento de decidir sua vida, fôr simplesmente o medo de crescer, 
crescer como jamais se permitiu antes à mulher? E se o terror que 
enfrenta nesta idade fôr o medo da liberdade para decidir a pró-
pria vida, sem interferência de ninguém, com o direito de seguir caminhos que a mulher jamais trilhou no passado? E se as que escolheram o caminho do «ajuste feminino», fugindo a esse terror, casando aos dezoito anos, perdendo-se entre os filhos e os detalhes 
domésticos, estiverem simplesmente recusando-se a enfrentar a questão de sua identidade? 
5* 67 Minha geração foi a primeira que caiu direto na nova mística 
feminina. Antes, embora a maioria acabasse de fato casando e tendo filhos, o objetivo da educação era descobrir a vida da mente, 
procurar a verdade e encontrar seu lugar no mundo. Havia uma 
sensação, já começando a esbater-se quando entrei na faculdade, 
de que seríamos a Nova Mulher. Nosso mundo seria muito mais 
amplo que o lar. Quarenta por cento de minha turma de Smith planejava seguir uma profissão. Mas lembro-me agora que algumas das 
mais velhas, sofrendo o temor do futuro, invejavam as poucas que 
escapavam casando-se imediatamente. 
Mas justamente essas que invejávamos sofreram o mesmo terror aos quarenta. «Nunca descobri quem sou. Tive demasiada vida 
social na universidade. Gostaria de ter estudado mais ciência, história, política e me aprofundado em filosofia», escreveu alguém no 
questionário do colégio, quinze anos depois. «Ainda estou procurando a rocha sobre a qual devo construir. Gostaria de ter tido uma 
vida mais profunda e criativa, em vez de ficar noiva e me casar aos 
dezenove anos. Tendo colocado o ideal no casamento, que incluía 
um marido cem por cento dedicado, foi um choque descobrir que 
as coisas não se passam exatamente assim», escreveu uma mãe de 
seis filhos. 
Muitas das que casam cedo na nova geração sofreram também 
esse terror. Julgavam ser desnecessário fazer uma opção, planejar 
o futuro, organizar a vida. Bastava esperar passivamente ser escolhida. Depois o marido, os filhos e a nova casa decidiram o resto. 
Deslizaram facilmente para a sua função sexual antes de saber quem 
eram como pessoa humana. Estas são as que mais sofreram do problema sem nome. 
Minha tese diz que o âmago do problema feminino não é de 
ordem sexual, e sim de identidade — uma atrofia ou evasão do 
crescimento, perpetuada pela mística. E' minha tese que assim como a cultura vitoriana não permitia à mulher aceitar ou gratificar 
suas necessidades sexuais básicas, a nossa cultura não lhe permite 
aceitar ou gratificar a necessidade básica de crescer e alcançar sua 
plenitude como ser humano, necessidade que não se define unicamente pela função sexual. 
Os biólogos descobriram recentemente um «soro da juventude» 
que, injetado na lagarta em estado de larva, a impedirá de se transformar em mariposa. As perspectivas de realização feminina oferecidas pelas revistas, pela televisão, o cinema e os livros que divulgam meias verdades psicológicas, e pelos pais, professores e conselheiros que aceitam a mística, agem como uma espécie de soro 
da juventude, conservando a maioria das mulheres em estado de 
larva sexual, impedindo-as de atingir sua plena maturidade. E há 
68 provas cada vez mais numerosas de que o fracasso da mulher em 
descobrir sua identidade prejudicou, em lugar de enriquecer, sua realização sexual, condenando-a virtualmente ao papel de castradora do 
marido e dos filhos, causando neuroses ou problemas ainda não definidos como tais, e semelhantes aos provocados pelo recalque sexual. 
O homem tem conhecido crises de identidade em todos os momentos cruciais da história, embora os que as sofreram não lhes 
tenham dado esse nome. Só recentemente os psicólogos, sociólogos 
e teólogos isolaram o problema e lhe deram um nome. Mas este 
problema é considerado apenas masculino. E' definido como crise 
de crescimento, escolha de identidade, ou decisão do futuro, nas palavras do brilhante analista Erik H. Erikson: 
"Batizei a crise principal da adolescência de 'crise de identidade'. Ocorre no período em que o jovem deve forjar uma perspectiva e diretivas pessoais, e uma unidade dinâmica, com os remanescentes efetivos de sua infância e as antecipações da vida adulta; precisa descobrir então uma analogia significativa entre o que encontra em si mesmo e o que sua personalidade aguçada lhe diz que os outros dele esperam... Em certas pessoas, 
classes e épocas será claramente marcada por um período crítico, uma espécie de 'segundo nascimento', passível de ser agravado por neuroticismos 
difusos, ou por inquietação ideológica generalizada". ? 
Neste sentido, a crise de identidade do homem pode refletir-se, 
provocar um renascimento, ou um novo estágio no desenvolvimento da humanidade. «Em alguns períodos da história e em algumas 
fases de sua vida, o homem necessita de uma nova orientação ideológica, tão certo como precisa de ar e alimento» — diz Erickson, 
lançando uma nova luz sobre a crise do jovem Martinho Lutero, 
que deixou um mosteiro católico nos fins da Idade Média para criar 
uma nova identidade para si mesmo e para o homem ocidental. 
A busca de identidade não é nova, porém, no pensamento americano, embora em todas as gerações o homem que sobre ela escreve pareça redescobri-la. Na América, desde seus primórdios, ficou entendido, de certo modo, que os homens devem atirar-se para 
o futuro. Assim o ritmo de vida foi sempre demasiado rápido para 
que essa identidade se fixasse. Em cada geração muitos sofreram 
miséria e incerteza por não poderem aceitar a imagem que haviam 
recebido de seus pais. A busca de identidade do rapaz que sente 
não poder voltar ao lar foi sempre itm tema importante entre os 
escritores americanos. E era considerado salutar sofrer essas dores 
de crescimento, procurar e descobrir a própria personalidade. O la-
1
 Erik H. Erikson, "Young Man Luther, A Study in Psychoanalysis and History" (O 
Jovem Lutero, um Estudo de Psicanálise e História), Nova York 1958, p. 15. Ver também 
Erikson, "Phildhood and Society" (Infância e Sociedade), Nova York 1950, e Erikson, 
"The Problem of Ego Identity" (O Problema da Identidade), Journal of the American 
Psychoanalytical Association, Vol. 4, 1956, pp. 56-121. 
69 vrador que vai para a cidade, o filho do alfaiate que se torna mé-
dico — Abraham Lincoln aprendeu a ler sozinho — constituem histórias mais significativas do que a simples passagem da miséria para a riqueza. Faziam parte integrante do sonho americano. O problema para muitos era dinheiro, raça, côr ou classe, que os impedia de escolher; não a ausência de objetivo, caso fossem livres 
para optar. 
Mesmo hoje em dia o rapaz aprende bem cedo que precisa decidir seu futuro. Se não resolve no ginásio ou na universidade terá 
que enfrentar o problema de qualquer maneira, aos vinte e cinco 
ou aos trinta, senão estará perdido. Mas esta busca de identidade 
é considerada mais grave agora porque um número crescente de 
rapazes não consegue encontrar modelos na nossa cultura — os pais 
ou outros homens — que os ajudem nessa busca. As velhas fronteiras foram conquistadas, e os limites das novas não estão claramente definidos. Um número cada vez maior de americanos sofre 
hoje dessa crise por falta de um ideal digno de ser contemplado, 
por ausência de um objetivo que preencha verdadeiramente sua capacidade humana. 
Mas por que não reconhecem os teóricos esta mesma crise de 
identidade na mulher? Em antigos termos convencionais e também 
nos da nova mística feminina ninguém espera que ela evolua a ponto de descobrir quem é e escolher sua identidade humana. A anatomia é o destino da mulher, dizem os teóricos da feminilidade. A 
personalidade feminina é determinada por sua condição biológica. 
Mas será mesmo? Um número crescente de mulheres vem fazendo a si própria essa pergunta. Como que despertando de um 
coma indagam: «Onde estou?... Que faço aqui?» Pela primeira 
vez na história observam em sua vida uma crise de identidade, crise que começou há muitas gerações, piorou com o passar dos anos 
e não terminará até que elas, ou suas filhas, tomem uma direção 
desconhecida e descubram a sua nova imagem, de que tantas agora 
necessitam desesperadamente. 
Num sentido que vai muito além do individual, creio que se 
trata da crise de crescimento da mulher, do afastamento da imaturidade, batizada de feminilidade, em direção à plenitude humana. 
Creio que a mulher precisava sofrer esta crise iniciada há cem 
anos e precisa sofrê-la ainda hoje para se tornar um ser humano completo. 
70 IV 
A vibrante jornada 
FOI A BUSCA DE UMA NOVA IDENTIDADE QUE LANÇOU 
a mulher, há um século, nessa impetuosa, criticada e mal interpretada viagem para fora do lar. 
Tornou-se moda nos últimos anos rir do feminismo, considerando-o uma das piadas da história, e caçoar daquelas mulheres ridículas que lutavam pelos direitos de seu sexo a uma educação superior, ao voto e à vida profissional. Eram vítimas neuróticas da 
inveja do pênis, querendo ser iguais ao homem, é o que agora se 
diz. Na luta pelo direito de participar de tarefas importantes e tomar decisões na sociedade ao mesmo nível que seu companheiro, 
elas negavam a própria natureza feminina, que só encontra a sua 
realização através da passividade sexual, da aceitação do domínio 
masculino e da maternidade. 
Mas, se não estou enganada, é esta primeira jornada que contém a pista de muita coisa que vem acontecendo à mulher desde 
então. E' uma estranha cegueira da psicologia contemporânea não 
reconhecer a realidade do entusiasmo que levava aquelas mulheres 
a deixarem o lar, em busca de uma nova identidade, ou, caso permanecessem, ansiarem amargamente por algo mais. Seu gesto foi um 
ato de rebeldia, uma violenta negação da mulher como era então 
definida. Foi a necessidade de uma nova personalidade que conduziu as feministas a abrir trilhas inéditas para a mulher. Alguns desses caminhos eram excessivamente árduos, outros não tinham saída 
e outros ainda talvez tenham sido falsos, mas era autêntica a necessidade da busca. 
O problema de identidade era então novo para a mulher. As 
feministas foram pioneiras na própria vanguarda da evolução femi-
71 nina. Precisam provar que a mulher era humana. Precisavam despedaçar, com violência se necessário, a estatueta de porcelana que representava a mulher ideal do século passado. Precisavam provar que 
ela não era um espelho vazio, passivo, uma decoração inútil, um 
animal sem inteligência, um objeto a ser usado, incapaz de interferir no próprio destino, antes de começarem a combater pelo direito 
de igualdade com o homem. 
Mulher imutável, infantil, seu lugar é em casa, diziam-lhe. Mas 
o homem estava evoluindo; seu lugar era o mundo e este mundo 
se ampliava. A mulher estava ficando para trás. A anatomia era o 
seu destino; podia morrer de parto, ou viver até os trinta e cinco, 
depois de doze filhos, mas era o homem que controlava seu destino com uma parcela da anatomia que nenhum outro animal possui: a mente. 
As mulheres também tinham inteligência, e sentiam a necessidade humana de evoluir, mas o trabalho que gerava a vida e a fazia 
progredir não era mais realizado em casa e não se ensinou a mulher a trabalhar no mundo. Confinada entre quatro paredes, uma 
criança entre outras crianças, passiva, incapaz de controlar qualquer 
setor de sua existência, a mulher só tinha uma função: agradar ao 
homem. Era totalmente dependente de sua proteção num universo 
que não ajudara a criar. Era incapaz, portanto, de formular a simples interrogação humana: «Quem sou eu? Que desejo?» 
Mesmo que o homem a amasse como a uma criança, uma boneca, um objeto, que lhe desse rubis, cetins, veludos, que a agasalhasse em sua casa e a protegesse como aos filhos, não ansiaria a 
mulher por algo mais? Era naquela época de tal modo considerada 
um objeto, jamais uma pessoa, que nem sequer se esperava que encontrasse prazer no ato sexual. «Êle a possuiu..., êle a gozou», dizia-se. Será difícil compreender que a emancipação, o direito a ser 
totalmente humana fosse tão importante para várias gerações de mulheres que algumas chegassem a lutar com os próprios punhos, fossem encarceradas, ou até morressem pela causa? E que pelo direito de evoluir humanamente algumas tenham renegado seu sexo e o 
desejo de amar, ser amada e ter filhos? 
Por estranha perversão da história, acredita-se que o entusiasmo e o ímpeto do movimento feminista nasceram do ódio ao homem, 
nutrido por solteironas amargas, esfomeadas de sexo, castradoras, 
assexuadas, que se consumiam em inveja tão profunda do órgão masculino que desejavam arrebatá-lo, destruí-lo, exigindo direitos apenas porque não tinham capacidade de amar como mulher. Mary 
Wollstonecraft, Angelina Grimké, Ernestine Rose, Margaret Fuller, 
Elizabeth Cady Stanton, Júlia Ward Howe, Margaret Sanger, todas 
amaram, foram amadas, casaram: várias parecem ter sido tão apaixo-
72 nadas em suas relações com o amante ou o marido — numa época 
em que tanto a paixão como a inteligência eram negadas ao seu 
sexo — como o foram na luta pelo direito de atingir sua estatura 
humana total. Mas se algumas, como Susan Anthony, a quem o destino ou a amarga experiência afastaram do casamento, lutaram pelo 
direito de se relizar, não em relação ao homem, mas como indivíduo, 
essa luta nasceu de uma necessidade tão real e exigente como a do 
amor. («A mulher precisa não de agir ou dominar como mulher», 
disse Margaret Fuller, «e sim de uma natureza para evoluir, um 
intelecto para discernir, uma alma para viver livremente, e a possibilidade de desenvolver sua potencialidade»). 
As feministas só possuíam uma imagem, uma visão de ser humano total e livre: o homem. Pois até recentemente apenas êle (mas 
não todos) tinha a liberdade e a educação necessárias para realizar sua potencialidade, abrir caminhos, criar, descobrir e planejar 
novas trilhas para as gerações futuras. Somente o homem tinha o 
direito de voto, a liberdade para traçar as grandes decisões da sociedade. Somente o homem era livre para amar, regozijar-se no amor 
e decidir sozinho, aos olhos de Deus, o que era certo ou errado. 
Desejaria a mulher essa liberdade por querer ser homem? Ou por 
ser também humana? 
O verdadeiro sentido do feminismo foi simbolicamente representado por Henrik Ibsen em 1879, quando em «Casa de Bonecas» disse que a mulher era simplesmente um ser humano, ferindo uma nota 
inédita na literatura. Milhares de mulheres da classe média europeia 
e americana, da época vitoriana, imaginaram-se no papel de Nora. 
E em 1960, quase um século depois, milhões de donas de casa americanas, assistindo a peça na televisão, identificaram-se com a heroína quando ela diz: 
"Você foi sempre tão bom para mim. Mas nosso lar não passa de uma 
sala de brinquedos. Sou sua espôsa-boneca, assim como em casa fui o brinquedo de papai e aqui as crianças são meus brinquedos. Eu me divertia 
quando você brincava comigo, assim como elas se divertem quando brincamos juntos. Isto tem sido o nosso casamento, Torvald... 
Serei capaz de educar as crianças?... Há uma outra tarefa que preciso realizar antes. Preciso educar-me — e você não é o homem capaz de 
ajudar-me. Tenho que fazê-lo sozinha. E é por isso que vou partir agora... 
Preciso estar inteiramente só para compreender a mim mesmo e ao que me 
rodeia. E' por esta razão que não posso permanecer ao seu lado..." 
O marido, escandalizado, lembra a Nora que «o mais sagrado 
dever da mulher» é cuidar do marido e dos filhos. «Antes de mais 
nada você é esposa e mãe» — diz êle. Ao que Nora responde: 
"Creio que antes de mais nada sou um ser humano dotado de raciocínio, assim como você — ou pelo menos preciso tornar-me. Sei muito bem, 
73 Torvald, que a maioria das pessoas julgará que você tem razão e essa maneira de pensar se encontra nos livros, mas não posso contentar-me com 
o que a maioria diz, ou com o que dizem os livros. Preciso raciocinar sozinha, procurar compreender..." 
Nos dias de hoje é um cliché dizer que a mulher passou meio 
século combatendo por «direitos» e outro meio perguntando a si 
mesma se os desejava, afinal. «Direitos» é vocábulo sem vibração 
para quem se criou depois de sua conquista. Mas, como Nora, as 
feministas precisavam lutar por eles antes de viver e amar como 
seres humanos. Não muitas naquele tempo, ou mesmo agora, ousaram deixar a única segurança que conheciam, voltar as costas ao lar 
e ao marido para iniciar a busca de Nora. Muitas, então e agora, 
contudo, acharam sua existência de donas de casa tão vazia que se 
tornaram incapazes de apreciar o amor do marido e dos filhos. 
Algumas — e até uns poucos homens, cônscios de que grande 
parte da humanidade não possuía o direito de ser totalmente humana — decidiram modificar as condições que mantinham escravizada a mulher. Essas condições, na forma de queixas contra o homem, foram enumeradas na primeira Convenção em Prol dos Direitos da Mulher, realizada em Séneca Falis, Nova York 1848: 
"Êle a obrigou a submeter-se a leis em cuja elaboração ela não participou... Forçou-a, ao casar, a morrer civilmente aos olhos da lei. Tiroulhe todo direito à propriedade e até ao próprio salário... No contrato de 
casamento ela é obrigada a prometer obediência ao marido, tornando-se êle, 
para todas as finalidades e propósitos, seu mestre, e recebendo por lei o 
direito de privá-la da liberdade e ministrar-lhe castigos... Êle decide contra ela em todos os campos da riqueza e das honrarias, que considera mais 
apropriados a si mesmo. Ela é desconhecida como mestre de teologia, medicina ou direito. Êle negou-lhe a possibilidade de uma educação completa, 
uma vez que as universidades lhes fecham as portas... Criou uma falsa 
opinião pública com um código de moral diferente para o homem e a mulher, segundo o qual faltas que a excluem da sociedade são não só toleradas, como consideradas de pouca importância para êle. Usurpou a prerrogativa do próprio Jeová declarando direito seu determinar-lhe uma esfera 
de ação, quando isso pertence somente à sua consciência e a Deus. Esfor-
çou-se de todas as maneiras por destruir sua autoconfiança e respeito pró-
prio, levando-o a viver uma existência dependente e abjeta". 
Estas foram as condições que as feministas decidiram abolir há 
um século e que fizeram da mulher o que ela é: «feminina», segundo a definição de então e de agora. 
Não pode ser simples coincidência o fato de que a luta pela 
emancipação da mulher tenha começado na América logo após a 
74 Revolução, fortalecendo-se com o movimento em prol da libertação 
dos escravos.' Thomas Paine, o porta-voz da Revolução, foi um dos 
primeiros a condenar, em 1775, a situação da mulher, «mesmo nos 
países onde ela é considerada mais feliz», tolhida em seus anseios, 
na disposição de seus bens, por lei sem liberdade ou vontade pró-
pria, escrava da opinião pública...» Durante a Revolução, cerca 
de dez anos antes que Mary Wollstonecraft encabeçasse o movimento feminista na Inglaterra, uma americana, Judith Sargent Murray, 
afirmou que a mulher precisava educar-se para traçar novos objetivos e evoluir para alcançá-los. Em 1837, ano em que Mount Holyoke 
abriu suas portas às mulheres, dando-lhes a primeira oportunidade 
para instruir-se ao nível dos homens, as americanas organizavam 
também a primeira convenção nacional contra a escravatura, em Nova York. As que lançaram formalmente o movimento em prol dos direitos da mulher em Séneca Falis conheceram-se quando lhes foi 
recusada admissão numa convenção contra a escravatura, em Londres. Isoladas por detrás de uma cortina da galeria, Elizabeth Stanton, em lua-de-mel, e Lucrécia Mott, tranquila mãe de cinco filhos, 
descobriram que nem só os escravos precisavam ser libertados. 
Sempre que houve uma explicação de liberdade humana em 
qualquer parte do mundo, a mulher soube conquistar para si uma 
parte. Não foi sexo que lutou na Revolução Francesa, libertou os 
escravos da América, derrubou o czar da Rússia, expulsou os ingleses da índia. Quando a ideia de liberdade agita a mente do homem inflama também a da mulher. As cadências da Declaração de 
Séneca Falis brotaram direto da Declaração de Independência: 
"Quando, no curso da História, tornou-se necessário a uma parte da 
família humana assumir entre os povos da terra uma posição diferente da 
que havia até então ocupado... consideramos evidente esta verdade: que 
todos, homens e mulheres, foram criados em condição de igualdade". 
Feminismo não foi um mau gracejo. A revolução feminista precisava ser empreendida porque a mulher ficou simplesmente detida 
num estágio de evolução muito aquém de sua capacidade humana. 
«A função doméstica da mulher não esgota as suas potencialidades», 
pregava o Rev. Theodore Parker em Boston, em 1853. «Obrigar 
metade da raça humana a esgotar suas energias unicamente nas fun-
ções de governanta, esposa e mãe é um monstruoso desperdício do 
1
 Ver Eleanor Flexner, Century of Strugglc: The Woman's Rlghts Movement in the 
United States (Século de Lutas: O Movimento pelos Direitos da Mulher nos Estados Unidos); publicado em 1959, no auge da mística feminina, não recebeu a atenção que merece do leitor inteligente e dos intelectuais. Em minha opinião deveria ser leitura obrigatória para todas as universitárias americanas. Uma das razões da persistência da mística é o fato de que poucas mulheres com menos de quarenta anos conhecem de fato 
o movimento em prol dos direitos da mulher. Muito devo a Eleanor Flexner pelas inúmeras pistas que sem ela me passariam despercebidas na luta pela verdade que jazia por 
detrás da mística feminina e sua monstruosa imagem das feministas. 
75 mais precioso material criado por Deus». Correndo como um fio 
brilhante, e às vezes perigoso, pela história do movimento feminista 
emergia também a ideia de que a igualdade entre os sexos era necessária a fim de libertar tanto o homem como a mulher para a 
verdadeira realização sexual.2
 Pois a degradação feminina refletiase no casamento, no amor e em todas as relações entre homem e 
mulher. «Após a revolução sexual», declarou Robert Dale Owen, o 
monopólio do sexo perecerá junto com outros injustos monopólios; 
e a mulher não estará limitada a uma virtude, uma paixão, uma 
ocupação».3 
Todos os que iniciaram a revolução previram «muito ridículo, 
muito erro de concepção e de interpretação». E foi o que aconteceu. 
As primeiras a falar em público pelos direitos da mulher na Amé-
rica — Fanny Wright, filha de nobre escocês, e Ernestine Rose, filha de um rabino — foram chamadas de «ruiva meretriz da infidelidade», e «mulher mil vezes mais baixa que uma prostituta». A 
declaração de Séneca Falis provocou tais protestos — como «Revolução», «Insurreição das Mulheres», «O Reino das Saias», «Blasfémia» — de jornais e ministros religiosos, que as timoratas retiraram sua adesão. Lúbricas narrativas de «amor livre e adultério legalizado» competiam com fantasias de sessões no tribunal, sermões 
nas igrejas e operações cirúrgicas interrompidas apressadamente para que uma senhora advogada, ministra ou médica presenteasse o 
marido com um filho. 
A cada passo as feministas precisavam lutar contra a concep-
ção de que estavam violando a natureza que lhes fora doada por 
Deus. Pastores interrompiam convenções pelos direitos da mulher 
agitando Bíblias e citando as Escrituras: «São Paulo disse... a cabeça da mulher é o marido».. . «Que a mulher fique em silêncio 
no templo, pois não lhe é permitido falar»... «E se nada aprender, 
que pergunte ao marido em casa, pois é uma vergonha a mulher 
falar no templo».. . «Não se permita à mulher ensinar, nem usurpar a autoridade do homem, mas fique em silêncio, pois Adão foi 
criado primeiro e depois Eva»... «São Pedro disse: esposas, sede 
sujeitas a vossos maridos»... 
Conceder à mulher iguais direitos seria destruir aquela «natureza mais gentil, que não só as faz repelir, como as desqualifica 
2
 Consultar Sidney Ditzion, Marriage, Morale and Sex in America — A History of 
Ideas (Casamento, Moral e Sexo nos Estados Unidos — História de Ideias), Nova York 
1953. Esse extenso ensaio bibliográfico, feito pelo bibliotecário da Universidade de Nova 
York, documenta o contínuo relacionamento entre os movimentos em prol de reformas 
sociais e sexuais nos Estados Unidos, especificamente o movimento do homem pela maior 
realização pessoal e sexual, e o movimento em prol dos direitos da mulher. Os discursos 
e documentos reunidos revelam que a luta pela emancipação da mulher era muitas vezes 
considerada pelo homem, assim como pelas mulheres que a lideravam, em termos de 
"criar um equilíbrio de forças entre os sexos", em benefício de "uma expressão mais 
satisfatória da sexualidade para ambos". 
3
 Ibid., p. 107. 
76 para o tumulto e a luta da vida pública», declarou piedosamente um 
senador de Nova Jersey, em 1866. «Elas têm uma missão mais elevada e mais santa: forjar o caráter do homem futuro, no retiro do 
lar. Sua missão é permanecer em casa, acalmando com seu amor as 
paixões do homem que regressa da luta pela vida, e não participar 
do competição, lançando óleo às chamas». 
«Aparentemente não se satisfazem em serem assexuadas, mas 
desejam também assexuar todas as mulheres do país», declarou um 
congressista de Nova York que se opôs a uma das primeiras peti-
ções pelo direito da mulher casada à propriedade e aquisição de 
bens. Já que «Deus fêz do homem o representante da raça», depois 
«tirou de seu flanco o material para criar a mulher», e colocou-a 
ao seu lado no matrimonio como «uma só carne, um só ser», a assembleia tranquilamente negou a petição. «Um poder mais alto do 
que as leis promulgou o mandamento segundo o qual homem e mulher não são iguais»." 
O mito de que as feministas eram «monstros antinaturais» baseava-se na crença de que destruir a submissão da mulher, ordenada por Deus, seria destruir o lar e escravizar os homens. Tais mitos surgem em todas as revoluções que fazem progredir uma parcela da família humana no sentido da igualdade. Sejam as feministas representadas como seres desumanos, furiosas devoradoras de homens, ofensoras de Deus, ou nos termos modernos como pervertidas sexuais, não diferem nisso do estereótipo do membro de sindicato anarquista, ou do negro encarado como animal primitivo. O 
que a terminologia sexual oculta é o fato de que o movimento feminista era uma revolução. Havia excessos, naturalmente, como em 
qualquer situação semelhante, mas os das feministas eram por si 
mesmos uma prova da necessidade da revolução. Brotavam, ao mesmo tempo que eram um apaixonado repúdio, das degradantes realidades da vida feminina, da subserviência impotente, oculta sob o 
gentil decoro, que tornava a mulher objeto de mal disfarçado desprezo dos homens, a tal ponto que ela própria passava a menos^ 
prezar-se. Evidentemente esses sentimentos eram mais difíceis de vencer do que as condições que os causavam. 
E' claro que a mulher invejava o homem. Algumas das primeiras feministas cortavam bem curtos os cabelos e usavam calças largas, tentando parecer com os homens. Baseadas na vida de sua mãe 
e na sua própria experiência, essas mulheres apaixonadas tinham 
boas razões para rejeitar a imagem convencional feminina. Algumas 
chegaram a repudiar o casamento e a maternidade. Mas, ao voltarem as costas à antiga imagem, ao lutarem pela libertação do seu 
4
 Yuri Suhl, Ernestine L. Rose and the Battle for Human Rights (Ernestine L. Rose 
e a Luta em prol dos Direitos Humanos), Nova York 1959, p. 158. Uma vívida narrativa 
da luta da mulher casada pelo direito de propriedade e salário. 
77 sexo, algumas constituíram-se de fato num tipo diferente de mulher: 
tornaram-se seres humanos completos. 
O nome de Lucy Stone evoca hoje uma fúria devoradora de 
homens, mulher usando calças e brandindo um guarda-chuva. O homem que a amava levou muito tempo a persuadi-la a casar-se. E 
embora Lucy gostasse dele e conservasse o seu amor durante toda 
a vida, jamais aceitou-lhe o nome. Ao nascer, sua mãe exclamara: 
«Oh, meu Deus! Que pena, é uma menina! A vida de uma mulher 
é tão difícil!» Algumas horas antes de o bebe nascer esta mãe, fazendeira do Massachusetts, em 1818, ordenhara oito vacas porque 
uma súbita tempestade levara todo o pessoal para o campo: era mais 
importante salvar a colheita de trigo do que atender a uma mulher 
a ponto de dar à luz. Embora esta mãe meiga e cansada executasse 
o infindável trabalho de uma fazendeira e tivesse nove filhos, Lucy 
criou-se sabendo que «só havia uma vontade em nossa casa: a de 
meu pai». 
Revoltou-se por ter nascido mulher, já que isso, segundo a Bí-
blia e sua mãe, significava algo tão humilhante. Revoltou-se quando ergueu seguidamente a mão em reuniões paroquiais e seu voto 
nunca era contado. Num círculo de costura, onde fazia uma camisa para um rapaz que pretendia ingressar no seminário, ouviu Mary Lyon falar em educação para a mulher. Deixou a camisa por 
terminar e aos dezesseis anos começou a ensinar na escola, a um 
dólar por semana, economizando durante nove anos a fim de conseguir o bastante para ingressar na universidade. Queria aprender 
«a lutar não só pelos escravos, como por toda a humanidade sofredora, e especialmente pela exaltação de seu próprio sexo». Mas 
em Oberlin, onde foi uma das primeiras mulheres a se diplomar no 
«curso regular», teve que praticar secretamente, no bosque, os seus 
discursos. Mesmo ali as moças eram proibidas de falar em público. 
"Lavando a roupa dos homens, arrumando seus quartos, servindo-os à 
mesa, ouvindo-os falar enquanto permaneciam em respeitoso silêncio nas reuniões públicas, as estudantes de Oberlin preparavam-se para uma maternidade inteligente e uma vida de esposa corretamente submissa".5 
Lucy Stone era pequenina, tinha voz suave e cristalina, capaz 
de acalmar uma multidão enfurecida. Discursava sobre a abolição 
aos sábados e domingos, como agente da Sociedade Anti-Escravagista, e pelos direitos da mulher no resto da semana, por conta pró-
pria — enfrentando e dominando homens que a ameaçavam com 
5
 Flexner, op. cit., p. 30. 
78 cacetes, que lançavam contra ela ovos e livros de oração e, certa 
vez, em pleno inverno, até a água gelada de uma mangueira, através da janela. 
Em certa cidade circulou o boato de que uma mulher alta, masculinizada, usando botas, fumando charuto e praguejando como um 
soldado, chegara para fazer conferências. As senhoras que acorreram para ouvir essa aberração manifestaram sua surpresa ao ver 
Lucy Stone, pequenina e delicada, vestida de preto, com uma gola 
de renda branca, «o protótipo da graça feminina, fresca como o ar 
da manhã». ° 
Sua voz de tal modo irritou as forças pró-escravagistas que o 
Boston Post publicou um poema grosseiro, prometendo que «as trombetas da fama soarão pelo homem que, com um beijo conjugal, fechar a boca de Lucy Stone». Esta considerava que «o casamento 
é para a mulher um estado de escravidão». Mesmo depois que Henry 
Blackwell a perseguiu de Cincinatti a Massachusetts («Ela nasceu 
locomotiva», queixava-se ele) e jurou «repudiar a supremacia tanto 
do homem como da mulher no casamento», e escreveu-lhe: «Eu a 
conheci em Niágara, sentei aos seus pés junto ao abismo, olhando 
para as águas escuras, com um anseio apaixonado e insatisfeito no 
coração, anseio que você jamais conhecerá ou compreenderá», e fêz 
um discurso público a favor dos direitos da mulher, mesmo depois 
que Lucy confessou amá-lo e escreveu «Você não me poderá dizer 
nada que eu já saiba sobre o vazio do celibato», ainda assim ela 
sofreu terríveis enxaquecas antes de tomar a decisão de se casar. 
Depois da cerimonia, o ministro Thomas Higginson declarou 
que «a heroína Lucy chorou como qualquer camponesa», acrescentando: «Nunca celebro a cerimonia do casamento sem um renovado senso da iniquidade de um sistema segundo o qual marido e 
mulher são um só, e esse um é o marido». E mandou para os jornais, para que outros casais o copiassem, o pacto que Lucy Stone 
e Henry Blackwell escreveram em conjunto, antes de trocarem as 
promessas conjugais: 
"Depois de reconhecer nossa mútua afeição assumindo publicamente a 
relação de marido e mulher... consideramos um dever declarar que este 
ato não implica, de nossa parte, em nenhuma sanção ou promessa de obediência voluntária às atuais leis do casamento, que não reconhecem a esposa 
como um ser independente e racional e conferem ao marido uma superioridade injuriosa e contra a natureza".T 
Lucy Stone e sua amiga Antoinette Brown (que mais tarde casou com um irmão de Henry), Margaret Fuller, Angelina Grimké, 
6
 Elinor Rice Hays, Morning Star, A Biography of Lucy Stone (Estrela da Manhã —• 
Biografia de Lucy Stone), Nova York 1961, p. 83. T
 Flexner, op. cit., p. 64. 
79 Abbey, Kelley Foster — todas rebelaram-se contra uma união prematura, e na verdade só se casaram depois que na luta contra a 
escravidão e em prol dos direitos da mulher começaram a descobrir 
uma personalidade feminina desconhecida das gerações anteriores. 
Algumas, como Susan Anthony e Elizabeth Blackwell, nunca se casaram. Lucy conservou o nome de solteira, num temor mais que 
simbólico de que tornando-se esposa morreria como pessoa humana. O conceito conhecido como «femme couverte» (mulher coberta) 
inscrito na lei cancelava o «próprio ser ou a existência legal da 
mulher pelo casamento. Para a casada o novo ser é seu companheiro, superior e mestre». 
Se é exato que as feministas eram «decepcionadas como mulheres», conforme diziam então seus inimigos, é porque quase todas, 
vivendo em tais condições, tinham razões para estar desapontadas. 
Num dos mais comoventes discursos de sua vida, Lucy Stone disse, em 1855: 
"Desde que me lembro de mim mesma fui uma mulher decepcionada. 
Quando, com meus irmãos, procurei as fontes do saber fui censurada com 
as palavras: "Isto não é para você, não é próprio das mulheres"... Na 
educação, no casamento, na religião, em tudo, a decepção é o nosso destino. 
Será a missão de minha vida aprofundar esse desapontamento no coração 
de todas, até que decidam não mais se curvar a êle".8 
Durante sua vida Lucy Stone viu radicalmente modificadas em 
relação às mulheres as leis de quase todos os estados, viu ginásios 
abrindo-lhes as portas, assim como dois terços das universidades 
americanas. Depois de sua morte, em 1893, o marido e a filha, Alice Stone Blackwell, dedicaram-se exclusivamente à inacabada luta 
pelo direito de voto. Em fins de sua apaixonada carreira, Lucy pô-
de dizer que se alegrava por ser mulher. Escrevendo à filha na véspera de seu septuagésimo aniversário, disse: 
"Espero que minha mãe possa ver-me agora e saiba que me sinto satisfeita por ter nascido mulher e num tempo em que havia tanto a fazer. 
Querida mãe! Teve uma vida difícil e lamentou que eu fosse mais uma menina para sofrer a dura existência de mulher... Mas sinto-me plenamente 
feliz por ter nascido".e 
Em certos homens e em certas épocas a paixão pela liberdade 
foi tão forte ou até mais forte do que a conhecida paixão do amor 
sexual. Parece ser fato que isso aconteceu a muitas das mulheres 
que lutaram pelo liberdade de seu sexo, não importa como se explique a força dessa outra paixão. Apesar das censuras e zombarias 
8
 Hays, op. cit., p. 136. 
9
 Ibid., p. 285. 
80 de pais e maridos, da hostilidade ou até de insultos por seu comportamento «antifeminino», as feministas prosseguiram em sua cruzada. Elas próprias viviam torturadas a cada passo por dúvidas íntimas. «Não é próprio de uma senhora viajar por toda a Inglaterra 
com uma bolsa de veludo verde, recolhendo dinheiro para abrir um 
colégio para mulheres», escreviam amigas a Mary Lyon. «Que faço 
eu de errado?», indagava ela. «Viajo de trem desacompanhada... 
Sinto-me deprimida e magoada com esse gracioso vazio, essa frívola atitude bem educada. Estou realizando um importante trabalho, 
não posso interrompê-lo». 
A encantadora Angelina Grimké teve a impressão de que ia desmaiar ao aceitar um convite, feito por gracejo, para falar diante da 
legislatura de Massachusetts sobre as petições anti-escravagistas, a 
primeira mulher a discursar para um corpo legislativo. Uma carta 
pastoral denunciava seu comportamento como indigno de uma mulher: 
"Chamamos atenção para os perigos que no momento parecem amea-
çar o caráter feminino com danos amplos e permanentes... A força da mulher é a sua dependência, oriunda da consciência daquela fraqueza que Deus 
lhe deu para sua proteção... Mas quando assume o lugar e a voz do homem 
como reformadora pública... seu caráter torna-se antinatural. Se a videira, 
cuja força e beleza residem no apoiar-se às latadas, ocultando-as em parte, 
resolve ser independente e sobrepujar a natureza do olmo, não só deixará 
de dar frutos como cairá de vergonha e desonra, no pó".10 
Não foi só a inquietação e a frustração que levaram a mulher 
a recusar-se ao silêncio e conduziu donas de casa da Nova Inglaterra a caminhar duas, quatro ou seis milhas, em noites de inverno, só para ouvi-la. 
A identificação da americana com a luta anti-escravagista pode ser ou não resultado do fermento inconsciente de sua própria 
rebeldia. Mas é fato inegável que ao se organizar, lutar e suplicar 
pela libertação dos escravos, a americana aprendeu a libertar-se a 
si mesma. No Sul, onde a escravatura mantinha as mulheres em casa, impedindo-as de educar-se, fazer pioneirismo ou participar das 
lutas sociais, a antiga imagem permanece intacta e houve poucas 
feministas. No Norte, as que participaram da Estrada de Ferro Subterrânea, ou trabalharam de outras maneiras para libertar os escravos, nunca voltaram a ser as mesmas. O feminismo viajou com os 
trens para oeste, onde a fronteira deu à mulher direitos quase iguais 
desde o princípio. (Wyoming foi o primeiro Estado a conceder-lhes 
o direito de voto). Individualmente, as feministas parecem não ter 
tido mais razões que outras mulheres de seu tempo para invejar ou 
odiar o homem. Mas o que tiveram foi respeito próprio, coragem, 
10
 Flexner, op. cit., p. 46. 
Mística Feminina — 6 81 força. Amassem ou odiassem o homem, fugissem ou sofressem humilhações, identificaram-se com todas as do seu sexo. As que aceitavam as condições degradantes sentiam desprezo por si mesmas. 
As feministas, que combateram essas condições, libertaram-se desse desprezo, tendo assim menos razões para invejar os homens. 
A chamada para a primeira Convenção em Prol dos Direitos 
da Mulher soou porque uma senhora culta, que já participara como 
abolicionista de uma luta social, viu-se frente a frente com as realidades do tédio e do isolamento, como dona de casa de cidade pequena. Tal a mulher diplomada, com seis filhos, morando hoje num 
subúrbio, Elizabeth Cady Stanton, mudando-se com o marido para 
a cidadezinha de Séneca Falis, sentia-se insatisfeita naquela vida de 
cozinhar, costurar, lavar e criar um filho após outro. O marido, 
líder abolicionista, ausentava-se com frequência. Elizabeth escreveu então: 
"Compreendo agora as dificuldades práticas da maioria das mulheres 
que vivem num ambiente isolado, e a impossibilidade de evoluírem permanecendo em contacto com crianças e criadas a maior parte do tempo... O 
descontentamento geral que senti em relação ao destino da mulher... o olhar 
cansado e ansioso da maioria, disseram-me que era preciso tomar drásticas 
medidas... Não sabia o que fazer, nem por onde começar. Minha única ideia 
era uma reunião pública para protesto e discussão"." 
Colocou apenas um anúncio nos jornais e donas de casa e mo-
ças que jamais haviam conhecido outro tipo de vida acorreram em 
grandes grupos, vindas de um raio de cinquenta milhas, para ouvila falar. 
Por mais dissemelhantes que fossem suas raízes sociais ou psicológicas, todas as que encabeçaram a luta pelos direitos da mulher 
possuíam uma inteligência acima da média, alimentada por uma educação incomum no seu tempo. De outro modo, fossem quais fossem 
seus sentimentos, não teriam podido ver para além dos preconceitos que justificavam a degradação da mulher, nem manifestado seu 
protesto. Mary Wollstonecraft educou-se sozinha a princípio, e foi 
depois orientada por um grupo de filósofos ingleses que pregavam 
os direitos do homem. Margaret Fuller aprendeu com o pai a ler os 
clássicos em seis idiomas e envolveu-se com o grupo transcendentalista que rodeava Emerson. O pai de Elizabeth Cady Stanton era 
juiz, obteve para a filha a melhor educação possível na época e suplementou-a permitindo-lhe assistir a sessões no tribunal. Ernestine 
Rose, filha de rabino, revoltou-se contra a doutrina de sua religião, 
que decretava a inferioridade da mulher em relação ao homem, tornou-se livre pensadora, graças à influência do filósofo utópico Ro-
11
 Ibid., p. 73. 
82 bert Owen, e desafiou costumes religiosos ortodoxos casando com 
o homem a quem amava. Nos tempos da luta mais acirrada pelos 
direitos da mulher, insistia sempre em que o inimigo não era o homem. «Não combatemos o homem e sim os maus princípios». 
Estas mulheres não foram devoradoras de homens. Júlia Ward 
Howe, bonita e brilhante filha de um dos «400» de Nova York, estudou profundamente tudo o que lhe interessava. Escreveu anonimamente o «Hino da República» porque o marido acreditava que devia 
dedicar-se em exclusivo a ele e aos seis filhos. Só começou a participar do movimento sufragista em 1868, ao conhecer Lucy Stone, 
que «durante muito tempo fora objeto de uma das minhas antipatias gratuitas. Quando olhei para aquele rosto suave e feminino e ouvi sua voz tão séria senti que o objeto do meu desagrado fora um 
simples fantasma, conjurado por interpretações sem sentido... Só 
poderia dizer: «Estou com você».12 
A ironia do mito das devoradoras de homens é que os supostos excessos das feministas surgiram de seu próprio desamparo. Quando se considera que a mulher não tinha nem merecia direitos, que 
poderia ela fazer por si mesma? Aparentemente não havia outro recurso senão falar. A partir de 1848 houve convenções feministas todos os anos, de âmbito nacional ou estadual, em grandes e pequenas cidades, em Ohio, Pennsylvania, Indiana, Massachusetts. As feministas seriam capazes de falar até o dia do juízo final sobre os 
direitos que não possuíam, mas como conseguir que os legisladores 
lhes permitissem conservar suas economias, ou os filhos após o divórcio, quando não tinham direito de voto? Como organizar e financiar uma campanha se não tinham bens e nem sequer o direito de possuí-los? 
A sensibilidade à opinião pública, decorrente da completa dependência da mulher, tornava mais doloroso cada passo que a afastava de sua gentil prisão. Mesmo quando tentava, no que estivesse 
ao seu alcance, modificar essas condições, colidia com uma barreira de ridículo. As roupas extraordinariamente desconfortáveis que 
as senhoras então usavam eram um símbolo de sua escravidão: espartilhos tão apertados que mal as deixavam respirar, meia dúzia 
de saias e anáguas, pesando dez a doze libras e tão compridas 
que varriam o pó das ruas. O espectro das feministas usando cal-
ças masculinas provinha em parte da bloomer — túnica à altura 
dos joelhos e calças pelos tornozelos. Elizabeth Stanton usou-as, a 
princípio com entusiasmo, para fazer os trabalhos domésticos, como 
as donas de casa usam calças compridas ou shorts. Mas quando as 
feministas adotaram as bloomers em público, como símbolo de sua 
emancipação, as piadas grosseiras dos jornais, dos vadios de esqui-
12
 Hays, op. cit., p. 221. 
6* 83 na e dos moleques de rua foram insuportáveis para a sensibilidade 
feminina. «Usamos esse traje para gozar de maior liberdade, mas 
o que é a liberdade física comparada à escravidão mental?» Disse 
Elizabeth Stanton, renunciando a sua bloomer. A maioria, como Lucy 
Stone, deixou de usá-la por uma razão mais feminina: não assentavam bem, exceto na magra e pequenina Sra. Bloomer. 
Contudo, essa desamparada graça senhoril precisava ser combatida na mente dos homens, das outras mulheres e delas próprias. 
Quando decidiram fazer uma petição em favor do direito da mulher casada a possuir bens, até mulheres batiam-lhes a porta à cara, replicando que tinham marido e não precisavam de leis para protegê-las. Quando Susan Anthony e seu grupo reuniram 6.000 assinaturas em dez semanas, a Assembleia do Estado de Nova York recebeu-as às gargalhadas, observando ironicamente que, uma vez que 
as senhoras têm sempre direito aos bocados mais requintados à mesa, ao melhor lugar na carruagem e a escolher o lado da cama que 
mais lhes convém, «se houver qualquer desigualdade ou opressão, 
as vítimas são os cavalheiros». Contudo, decidiriam por uma emenda, caso marido e mulher tivessem assinado a petição. «Neste caso 
recomendariam a ambas as partes apelar para a lei, a fim de obter 
autorização para trocar de trajes; o marido usaria saias e a mulher, calças». 
E' espantoso que a mulher tenha conseguido conquistar um ponto sequer sem tornar-se megera amarga e, pelo contrário, continuando entusiasmada, cônscia de estar escrevendo uma página da História. Há mais decisão do que amargor em Elizabeth Stanton, grá-
vida depois dos quarenta, escrevendo a Susan Anthony que este seria, de fato, o último filho e que a diversão estava apenas come-
çando: «Coragem Susan, só chegaremos à flor da idade aos 50». 
Dolorosamente insegura e cônscia de sua falta de atrativos — não 
por desprezo dos homens (ela tinha admiradores), mas por causa 
de uma irmã mais velha muito bonita e da atitude da mãe, que considerava o estrabismo uma tragédia — Susan Anthony, de todas as 
líderes feministas do século XIX, foi a única que se aproximou do 
mito, sentindo-se traída quando as outras começaram a casar e ter 
filhos. Mas, apesar dessa mágoa, não era uma solteirona amarga, de 
gato ao colo. Viajando sozinha de cidade em cidade, pregando as 
faixas que anunciavam as reuniões, usando ao máximo sua habilidade como organizadora e conferencista, abriu caminho em um mundo cada vez mais vasto. 
No decorrer de sua vida essas mulheres transformaram a imagem que justificava a degradação feminina. Numa reunião, enquanto os homens zombavam da ideia de confiar o voto a mulheres tão 
indefesas que precisavam de ajuda para subir a uma carruagem ou 
84 saltar sobre uma poça de lama, uma orgulhosa feminista chamada 
Sojourner Truth ergueu seu negro braço: 
"Olhem para meu braço! Cavei, plantei, colhi... e não sou mulher? Era 
capaz de trabalhar e comer tanto quanto um homem — depois que consegui isto — e também suportar o açoite... Tive treze filhos e vi a maioria 
vendidos como escravos. E quando chorei pela dor que já foi a de minha 
mãe, ninguém senão Jesus me ajudou — e não sou mulher?" 
A frívola imagem senhoril foi também esvaziada por milhares 
de mulheres que trabalhavam nas fábricas de tijolos: as moças das 
usinas Lowell, que combateram as terríveis condições de trabalho, 
resultantes em parte da suposta inferioridade feminina. Mas essas 
mulheres, que depois de um dia de doze ou treze horas na fábrica, 
tinham ainda que fazer os trabalhos domésticos, não poderiam liderar essa brilhante cruzada. Quase todas as feministas mais importantes pertenciam à classe média e foram induzidas, por uma diversidade de motivos, a se educar e despedaçar a imagem vazia. 
O que as impulsionava? «Preciso descarregar minhas energias 
em nova direção» — escreveu Louisa May Alcott no seu diário, quando decidiu apresentar-se como enfermeira na Guerra Civil. «Uma viagem muito interessante, num mundo novo, cheio de sons, visões emocionantes, aventuras inéditas e da crescente percepção da grande tarefa que eu havia empreendido. Rezei minhas orações enquanto percorria o campo branco de tendas, vibrante de patriotismo e já vermelho de sangue. Uma hora solene, mas sinto-me feliz por vivê-la». 
O que as impulsionava? Solitária e agitada por dúvidas íntimas, 
Elizabeth Blackwell, na sua inédita e monstruosa determinação de ser 
médica, ignorava gracejos — e cantadas — para fazer suas dissec-
ções anatómicas. Lutou pelo direito de assistir à dissecção dos órgãos reprodutores, mas resolveu não participar do desfile inaugural 
do ano letivo, pois não seria próprio de uma mulher. Repelida até 
pelos colegas, escreveu: 
"Sou mulher, assim como sou médica... Compreendo agora por que esta 
vida jamais foi antes procurada. E' dura, sem qualquer incentivo, exceto um 
propósito elevado. E' viver contra toda espécie de oposição social... Gostaria de me divertir um pouco, de vez em quando. A vida é séria demais".13 
No decorrer de um século de luta, a realidade desmentiu o mito de que a mulher usaria seus privilégios para o domínio vingativo 
do homem. Ao conquistar o direito de uma educação superior, o direito de falar em público, e possuir bens, e o direito de trabalhar 
num emprego ou profissão controlando seus ganhos, as feministas 
13
 Flexner, op. cit., p. 117. 
85 passaram a ter menos motivos de amargor contra os homens. Mas 
havia ainda uma batalha a vencer. E' como disse em 1908 o brilhante 
M. Carey Thomas, primeiro presidente de Bryn Mawr: 
"As mulheres constituem a metade da raça humana, mas até um século 
atrás ... viviam num crepúsculo, numa meia-vida isolada, olhando os homens como sombras ambulantes. O mundo era dos homens. As leis eram 
dos homens, o governo era dos homens, o país era dos homens. Agora a 
mulher conquistou o direito a uma educação superior e independência económica. O direito de se tornar cidadã do estado é a próxima e inevitável 
consequência da educação e do trabalho fora do lar. Chegamos a este ponto: precisamos ir mais além. Não podemos retroceder agora".14 
E' que o movimento pelos direitos da mulher se torna quase 
excessivamente respeitável; contudo, sem o voto, não conseguiriam 
que nenhum partido político as levasse a sério. Ao voltar à pátria 
em 1907, viúva de um inglês, a filha de Elizabeth Stanton, Harriet 
Blatch, descobriu que o movimento no qual sua mãe a criara estava 
reduzido a um estéril círculo de reuniões sociais. Observara as tá-
ticas usadas pelas inglesas para dramatizar o movimento, em estagnação semelhante: caçoar dos oradores em reuniões públicas, provocar deliberadamente a polícia, fazer greve de fome na prisão — 
o tipo da resistência dramática não violenta que Ghandi usava na 
índia, ou que os Cavalheiros da Liberdade usam agora os Estados 
Unidos, quando as táticas legais não afetam a segregação. As feministas americanas nunca tiveram que recorrer aos extremos de suas 
ainda mais sofredoras companheiras inglesas, mas dramatizaram o 
voto até despertar uma oposição muito mais poderosa que a sexual. 
Assim como a batalha pela libertação da mulher teve início no 
século XIX com a luta pela abolição da escravatura, no século XX 
brotou do combate pelas reformas sociais de Jane Addams e Hull 
House, ao despertar do movimento sindicalista e das grandes greves e contra as intoleráveis condições de trabalho nas fábricas. Para as moças operárias, trabalhando a seis dólares por semana até 
10 horas da noite, multadas por falar, rir ou cantar, a igualdade 
era mais uma questão de educação que de voto. Fizeram passeatas 
sob frio intenso, em meses de fome geral; muitas foram agredidas 
por policiais e levadas nos carroções da polícia. E as novas feministas conseguiam dinheiro para a fiança e o alimento das grevistas, 
como suas mães haviam auxiliado a Estrada de Ferro Subterrânea. 
Por detrás dos gritos de «salve a feminilidade», «salve o lar» 
começava-se a sentir a influência da máquina política, estremecendo 
à ideia do que aquelas mulheres fariam se conseguissem o direito 
de voto. Afinal, estavam até tentando fechar os bares. Cervejarias e 
14
 Ibid., p. 235. 
86 outros interesses comerciais, especialmente os que dependiam do tra-* 
balho mal pago de crianças e mulheres, lutavam abertamente contra 
o sufrágio feminino em Washington. Os políticos duvidavam de sua 
capacidade para controlar uma parcela do eleitorado que lhes parecia relativamente imune ao suborno, e era agressiva e inclinada a 
incómodas reformas que iam desde o controle do esgoto até a abolição do trabalho infantil, e, pior ainda, à «limpeza da política».1S 
E os congressistas do Sul apressaram-se a lembrar que sufrágio feminino significava também sufrágio para a mulher negra. 
A luta final pelo voto foi travada no século XX pelo crescente 
número de universitárias, lideradas por Carrie Chapman Catt, filha 
das planícies do Iowa, professora e jornalista, cujo marido, engenheiro de sucesso, lhe dava seu decidido apoio. Um grupo, que mais 
tarde se chamou Partido das Mulheres, foi objeto de contínuas manchetes dos jornais por suas passeatas diante da Casa Branca. Maltratadas pela polícia e os tribunais, fazendo greves de fome nas prisões e finalmente martirizadas pela alimentação forçada, muitas eram 
quakers e pacifistas. Mas a maioria apoiou a guerra, ao mesmo tempo que prosseguia na campanha pelos direitos da mulher. Dificilmente seriam responsáveis pelo mito da devoradora de homens, que 
surgiu nos tempos de Lucy Stone e até hoje é evocado sempre que alguém tem motivos para se opor a que a mulher se afaste do lar. 
Num período de cinquenta anos, a americana organizou para 
esta batalha final 56 campanhas plebiscitárias para os votantes masculinos; 480 para conseguir que as legislaturas promulgassem emendas sufragistas; 377 para obter que em convenções de partidos fossem incluídas as plataformas de sufrágio feminino; 30 para conseguir em convenções presidenciais a adoção de plataformas sufragistas; e 19 campanhas em 19 sucessivos Congressos.19
 Alguém tinha 
que organizar todas essas passeatas, discursos, petições, reuniões, 
pressões sobre o Congresso. As novas feministas não eram mais um 
punhado de mulheres dedicadas. Milhares, milhões de americanas com 
marido, filhos e lar, dedicavam à causa todo o seu tempo disponí-
vel. A desagradável imagem da feminista lembra hoje menos a autêntica lutadora do que a figura criada pelos interesses que tão acirradamente se opunham ao voto feminino, em estado após estado, 
ameaçando os legisladores de ruína política ou económica, comprando ou até roubando votos, mesmo depois que trinta e seis estados 
já havia ratificado a emenda. 
As que lutaram pela emancipação conquistaram mais do que um 
vazio direito. Afastaram o desprezo e a autodepreciação que há sé-
culos vinham degradando a mulher. A alegria, a excitação e as re-
15
 Ibid., p. 299. 
18
 lbid., p. 173. 
87 compensas pessoais dessa luta são descritas por Alexa Ross Wylie, 
feminista inglesa: 
Para minha surpresa descobri que a mulher, apesar de ter joelhos pontudos e pernas que durante séculos não podiam sequer ser mencionadas, era 
capaz, de uma hora para outra, de correr mais que a média dos policiais 
londrinos. Com um pouco de prática, sua pontaria tornou-se bastante apurada para acertar legumes podres em olhos ministeriais, e seu engenho bastante aguçado para manter a Scotland Yard correndo em círculos, totalmente aparvalhada. Sua capacidade de improvisação, de sigilo e lealdade, seu 
iconoclástico desprezo pelas classes e a ordem estabelecida foram uma revelação para todos, mas especialmente para ela própria... 
O dia em que, com um soco de esquerda, mandei um policial de tamanho razoável para o poço da orquestra, no teatro em que estávamos fazendo uma tumultuada reunião, marcou minha entrada na vida adulta... 
Eu não era nenhum génio e o episódio não me transfigurou, mas libertoume para ser o que bem entendesse, até o ponto culminante de minha inclinação. .. 
Durante dois anos, riscos de aventuras loucas e às vezes perigosas, trabalhei e lutei ao lado de mulheres fortes, felizes, ajustadas, que davam gargalhadas em lugar de risadinhas e eram capazes de fazer jejum mais prolongado que o de Ghandi e sair dele com um sorriso e uma piada. Dormi 
no chão duro entre duquesas idosas, gordas cozinheiras e jovens comerciarias. 
Vivíamos com frequência cansadas, magoadas, e assustadas, porém mais satisfeitas que nunca. Sentíamos uma alegria de viver que jamais conhecêramos. A maioria das minhas companheiras eram esposas e mães. E estranhas coisas aconteceram em sua vida doméstica. Os maridos voltavam para 
casa com um novo entusiasmo... Quanto às crianças, sua atitude mudou 
rapidamente de afetuosa tolerância pela pobre mãe, para o espanto de olhos 
arregalados. Libertadas do carinho sufocante, pois a mãe vivia demasiado 
ocupada para se preocupar excessivamente com elas, descobriram que a amavam mais ainda. Ela era fabulosa! Tinha uma coragem... As que ficaram 
por fora do combate — sinto dizer, eram a vasta maioria — odiavam as 
lutadoras com a raiva venenosa da inveja...17 
A mulher terá voltado ao lar por reação ao feminismo? O fato 
é que, para as nascidas depois de 1920 o feminismo era caso encerrado. Na América terminou com a conquista do direito final: o voto. 
Nas décadas de trinta e quarenta, as que lutaram pelos direitos femininos preocupavam-se ainda com os direitos humanos, a liberdade 
dos negros, dos operários oprimidos, as vítimas da Espanha de Franco, e da Alemanha de Hitler. Mas ninguém se interessava mais pelos direitos da mulher: já haviam sido todos conquistados. Contudo, 
o mito da devoradora de homens prevalecia. As que demonstravam 
independência ou iniciativa eram chamadas «lucy stones». Feminista 
e profissional tornaram-se palavrões. As primeiras haviam destruído 
a antiga imagem da mulher, mas não conseguiram apagar a hostilidade, os preconceitos, a discriminação. E não podiam traçar uma 
" Ida Alexis Ross Wylie, "The Little Woman" (A Mulherzinha). Harper's Magazine, 
novembro de 1945. 
88 nova imagem quando cresciam sob condições que não mais as tornavam inferiores ao homem, dependentes, passivas, incapazes de raciocínio ou decisão. 
A maioria das moças que se criaram nos anos em que as feministas eliminaram as causas daquele vazio decoro tinham como 
imagem de mulher as mães ainda presas a ele. Essas mães foram 
provavelmente o verdadeiro modelo do mito das devoradoras de homens. O desprezo e a autodepreciação que poderiam transformar uma 
suave dona de casa numa megera dominadora levou algumas de suas 
filhas a agressivas imitações dos homens. As primeiras mulheres a 
ingressar no mundo dos negócios e em carreiras liberais foram consideradas aberrações. Inseguras em sua recém-adquirida liberdade, 
algumas temiam talvez ser suaves demais, amar e ter filhos, perdendo assim sua preciosa independência, voltando a ser prisioneiras como suas mães. E com isso reforçaram o mito. 
Mas as que cresceram com os direitos conquistados pelas feministas não podiam voltar à velha imagem de vazio decoro, não 
tinham as razões de suas tias ou mães para se tornarem iradas có-
pias dos homens, nem temiam ser amadas. Haviam chegado, sem 
saber, ao ponto crítico da identidade feminina. Haviam, de fato, ultrapassado a velha imagem; estavam finalmente livres para ser o que 
bem entendessem. Mas que opção lhes era oferecida? De um lado, 
a feminista devoradora de homens, a profissional sem amor, solitária. Do outro, a suave esposa e mãe, amada e protegida pelo marido e rodeada de filhos carinhosos. Embora muitas continuassem a 
entusiástica jornada que suas avós haviam iniciado, milhares desertaram, vítimas de uma escolha errónea. 
As razões dessa escolha eram naturalmente mais complexas que 
o mito feminista. Como terá a mulher chinesa, depois de viver com 
os pés amarrados durante várias gerações, finalmente descoberto que 
era capaz de correr? As primeiras mulheres cujos pés não foram 
atados devem ter sentido tanta dor, que algumas tiveram medo de 
ficar de pé e mais ainda de andar ou correr. Porém, quanto mais 
caminhavam, menos dor sentiam. Que teria acontecido se, antes que 
a primeira geração de chinesas crescesse de pés livres, os médicos, 
querendo poupar-lhes dor e preocupação, as aconselhassem a atá-
los novamente? E se os mestres lhes dissessem que andar de pés 
amarrados era mais feminino, o único recurso para serem amadas 
pelos homens? E os sábios afirmassem que seriam melhores mães 
caso não se afastassem um momento dos filhos? E se os vendedores ambulantes, percebendo que as mulheres que não podiam andar 
compravam mais quinquilharias, espalhassem histórias sobre os riscos de correr e as maravilhas de viver atada? As chinesas não cres-
89 ceriam desejando ter os pés firmemente amarrados, e sem jamais tentarem caminhar ou correr? 
A verdadeira piada da História em relação à mulher americana 
não é a que faz as pessoas rirem com afetação das feministas mortas. E' a peça que as teorias freudianas pregaram à mulher viva, 
destorcendo a lembrança das feministas, transformando-as no fantasma da mística feminina e reduzindo o próprio anseio de ser algo 
além de esposa e mãe. Encorajada pela mística a fugir a essa crise 
de identidade em nome da sua realização sexual, a mulher voltou 
a viver de pés atados a velha imagem da gloriosa feminilidade. E 
esta imagem, apesar de suas roupagens novas, a aprisionou durante séculos e levou as feministas à revolta.

Retirado do livro "Mística Feminina" de Bretty Friedan 

2 comentários:

  1. Gostei!

    Reflexões e esclarecimentos que muitas vezes passam despercebidos para a maioria de nós.

    Abç!

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